Hoje em algumas organizações que se dizem de cunho revolucionário, questões relativas à emancipação feminina são tidas como secundárias. Daí se conclui que, e as demais questões que afligem o povo ? machismo, racismo, homofobia (discriminação a homossexuais) ? se resolveriam como que magicamente.

É fácil considerar secundário o preconceito contra alguém que não sou eu.

As mulheres, no entanto, insistem em levantar tais questões "secundárias", afinal é nas costas delas que o açoite do machismo se abate.

A opressão da mulher é enorme e ao mesmo tempo quase invisível. Ela consiste em uma série de maneiras de agir e pensar profundamente enraizadas em nossos corações e mentes.

Dentro deste prisma, enquanto a mulher é tachada de consumista, desequilibrada, irresponsável, impulsiva, guiada por instintos, o homem seria caracterizado como econômico, prudente, trabalhador, provedor do lar.

Ao sexo masculino seria reservada a vida pública, enquanto a mulher estaria naturalmente destinada à esfera privada: lar, filhos, família.

Em princípio não há que se condenar um casal em que a mulher tenha optado por cuidar dos afazeres domésticos enquanto o homem trabalha na rua. Porém considerar que tal estrutura é natural e obrigatória é algo profundamente pernicioso. Este tipo de estruturação da vida familiar foi tão naturalizado e introjetado nas pessoas que hoje é exigido também da mulher que trabalha fora que cuide sozinha da casa e dos filhos ? tarefas "naturalmente" femininas. Quando essa dupla jornada de trabalho se torna demasiado extenuante, as famílias que não obrigam a mulher a abandonar seu emprego externo, para se dedicar ao seu "papel natural" no lar, optam por contratar uma empregada (notem: uma empregada, não um empregado). Assim o marido "progressista" de classe média julga resolver o problema da dupla jornada da esposa livrando-a do serviço doméstico. Mas nos cabe indagar: e a empregada doméstica? Ela trabalhará fora o dia inteiro, depois terá que cuidar sozinha da própria casa, afinal isto é trabalho de mulher, ou não?

Pois bem, não é atividade de mulher nem de homem. Não há nada na natureza que determine qual deve ser o trabalho ou a conduta masculina ou feminina. Todas as formulações que buscam fundamentar uma moral para o homem e outra para a mulher não passam de construções teóricas que tentam naturalizar e eternizar um modelo conveniente às estruturas sociais dominantes.

No contexto latino-americano, o homem seria naturalmente propenso ao adultério e que reprimi-lo por essa prática seria uma agressão à sua masculinidade. Em contrapartida a mulher seria monogâmica por natureza e aquelas que transgredissem esta regra o estariam fazendo por falha de caráter. Chega-se a formular justificativas biológicas para isso.

Os homens, por serem dotados de milhões de espermatozóides, seriam propensos a distribuí-los a uma grande quantidade de mulheres, pois estas só produzem um óvulo por mês. Quando se quer criar coelhos, por exemplo, é aconselhável deixar o mesmo macho com várias fêmeas para rápido aumento da criação. O fato é que não somos coelhos ou preás ? pretendemos ser seres humanos ? e nosso objetivo como sociedade não é fecundar o maior número de fêmeas possível.
Seria bem fácil criar alguma teoria de cunho biológico que "provasse" que o homem deveria ser casto, enquanto à mulher caberia ter vários parceiros. Basta pensar, por exemplo, que é possível a mulheres manterem 30 relações sexuais por dia enquanto o homem estaria "naturalmente" destinado a uma vida sexual menos agitada, por limitações de ordem biológica.

A mentalidade machista que perpassa toda a sociedade, mesmo sem percebermos, contamina nosso cotidiano e traz graves conseqüências.

Uma filha adolescente dormindo até tarde é algo que fere de forma irracional a mãe de família que encara com naturalidade o pai roncar até meio-dia recendendo à cerveja. Quando o pai sai do quarto, vestido apenas com o calção do pijama, se queixando da ressaca, a primeira coisa que pergunta é: "Essa menina ainda está dormindo?". A mãe suspira como que lamentando a filha indolente que tem. Se, acordada pelos pais, a jovem sai do quarto só de camisola, será certamente acusada de falta de compostura. É, de fato, insuportável a uma família constituída nos moldes burgueses ver uma adolescente dormir, andar de camisola, comer, sair com namorados...

Já o filho ? apesar de também ser, até certo ponto, considerado propriedade dos pais ? é incentivado à vida pública: sair, beber, dirigir, ter amigos e, sobretudo, mulheres. Ele não deve ter propriamente uma namorada; quanto mais efêmeras e numerosas suas ligações amorosas, mais felizes os pais ficam.

Na sala, deitado, um rapaz pede à irmã que lhe prepare um sanduíche. Se a irmã lhe responde que o faça ele mesmo, a mãe intervém chamando-a de preguiçosa e indo ela mesma preparar o lanche do filho (trabalho doméstico, "natural" da mulher). Depois de uma cena familiar deste tipo, normalmente se passa o resto do dia falando mal da jovem, chamando-a de egoísta e imprestável. Seria, porém, inconcebível que a moça pedisse ao irmão que lhe preparasse comida ou fizesse qualquer favor doméstico.

Numa família muito pobre, tal tipo de opressão pode trazer conseqüências devastadoras para a mulher. A filha mais velha pode, por exemplo, ser forçada a ficar em casa cuidando da mais nova enquanto o irmão vai à escola. A filha dedicada o que ganha? Ignorância e escravidão doméstica. A ela restará a esperança de que talvez um dia venha a ser resgatada de sua triste realidade por algum príncipe encantado que a leve a algum bonito castelo. Até lá permanece sofrendo, beijando mais e mais sapos, esperando que algum deles se torne príncipe. Um dia engravida, leva uma surra em casa, é posta na rua, sem lar, instrução ou trabalho. É grande a possibilidade de se tornar prostituta e vir a servir ao rapaz de classe média que exigia, da irmã, um sanduíche. Ele se sentirá feliz em encontrar alguém que o sirva sem restrições, mas no fundo a considerará uma preguiçosa como a irmã, caracterizando-a como mulher de vida fácil.
Nenhuma mulher tem vida fácil sob o capitalismo.